O maior défice do País não é financeiro, nem é democrático, talvez seja neuronal, mas é concerteza de senso comum
Domingo, 15 de Junho de 2008
come along or get out of the way

 

O senso comum (commonsense) na teoria constitucional diz que os tratados não devem ser referendados. Era isso que estava na versão original da Constituição Portuguesa. A própria Constituição Portuguesa nunca foi referendada, nem a americana, nem nenhuma que eu conheça. Porquê? Pelas mesmas razões porque não foi referendado o Código Civil, nem o Código Penal, nem o Código de Processo Penal, apesar de terem uma influência mais directa e mais relevante na vida e na liberdade das pessoas comuns. Porque são textos, longos, complexos e muito vulneráveis à demagogia.
 
Aqui entronca uma questão que é crucial: a democracia deve ser directa ou representativa? A democracia directa resvala invariavelmente e inevitavelmente para a demagogia. Na democracia representativa, os cidadãos elegem deputados que, por sua vez, votam as leis, em nome dos eleitores. Assenta no princípio – óbvio – de que os eleitos são mais esclarecidos e menos vulneráveis à demagogia do que os eleitores.
 
Foi por isso que os constituintes americanos, quando redigiram a constituição dos USA, o fizeram numa casa fechada, com portas e janelas trancadas, sem poderem entrar nem sair, nem contactar com quer que fosse de fora. Esta prática foi sustentada numa máxima que ficou célebre: não substituir um tirano a seis mil milhas de distância por seis milhões de tiranos a algumas milhas de distância. A ideia foi a de evitar a pressão da opinião pública. Foi assim que surgiu a constituição mais bem feita e mais duradoura de sempre.
 
É por isto que sempre fui contrário aos referendos em geral e ao referendo do Tratado Constitucional da EU, primeiro, e ao do Tratado de Lisboa, depois. Porque a demagogia dá cabo deles. Não me surpreenderia que um referendo sobre o Tratado de Lisboa, também não passasse em Portugal.
 
Podem questionar-me se eu acho que o povo é estúpido. E eu respondo que não é suficientemente preparado para compreender, nem o Trado Constitucional da EU, nem o Tratado de Lisboa, nem a própria Constituição da República Portuguesa. Num referendo, não passaria sequer a lei do Orçamento Geral do Estado.
 
Indo directo ao assunto:
 
Quais foram as razões do voto contra irlandês. Na campanha do não foram principais os argumentos seguintes:
- haveria harmonização fiscal com o aumento dos impostos na Irlanda, que são hoje os mais baixos da Europa;
- haveria liberalização do aborto;
- acabaria a neutralidade da Irlanda.
 
Vendo um por um:
- a Irlanda tem os impostos mais baixos da Europa porque recebe dinheiros pagos com os impostos dos demais cidadãos da Europa;
- nada no Tratado de Lisboa implica a liberalização do aborto na Irlanda, e as irlandesas sempre que querem abortar dão um pulinho até Inglaterra, ali ao lado;
- também nada no Tratado de Lisboa implica o fim da neutralidade e da desmilitarização da Irlanda.
 
Mas, o que mais me impressionou no referendo irlandês foi a enorme abstenção. 46 virgula tal por cento não se deram ao trabalho de votar, nem quiseram saber.
 
Isto significa que a maioria dos irlandeses não querem saber da Europa. Interessa-lhes que lhes pague os impostos, os defenda em caso de necessidade e que lhes subsidie a economia. Quando eram miseráveis, interessou-lhes a Europa; agora que estão ricos, já não querem saber de mais ninguém.
 
Os irlandeses têm todo o direito de tomar esta atitude. É com eles.
 
Mas não podem pretender que os outros milhões de europeus, aceitem o seu veto, paguem os seus impostos, subsidiem a sua economia e os defendam em caso de ser preciso.
 
É anti-democrático e insuportável que mais ou menos 700 mil irlandeses imponham a sua vontade a mais ou menos 480 milhões de europeus. Não pode ser!
 
A solução é só uma: não há que obrigar os irlandeses a coisa nenhuma, mas não há que parar o processo de integração europeia, se necessário, sem os irlandeses. Se estão mal, mudem-se.
 
Em linguagem que os irlandeses entendem:
 
Come along or get out of the way!
 

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publicado por commonsense às 13:56
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13 comentários:
De Jorge A. a 15 de Junho de 2008 às 20:58
Caro commonsense,

os parlamentos são eleitos nas eleições legislativas, nessas mesmas eleições onde no programa dos dois maiores partidos portugueses era prometido um referendo sobre a questão (e discordo do seu ponto 2b., não há alterações significativas entre a constituição e o tratado). Quer tendo em conta isto falar em confiança nos deputados eleitos - quando estes não começam logo por não cumprir aquilo que haviam prometido? E o pior é o que os leva a não cumprir, que no caso português foi acima de tudo por imposição francesa e do seu presidente.

"Com este referendo os Irlandeses - os que se abstivera e os que votaram NO - mostram que não têm o sentido solidário que é fundante da União Europeia."

Qual solidariedade? Tiveram solidariedade comigo que não me foi dada oportunidade de votar e votaria não. Mais, os irlandeses com o "não" em nada se mostraram contra a UE, não era isso que estava em causa, manifestaram-se foi contra o tratado de Lisboa e o rumo que o mesmo implica.

Ao contrário do que me parece ser a ideia do commonsense de maior integração politica, eu não vejo com bons olhos tal caminho - e este referendo e a forma como o eixo franco-alemão força a tomada de posição ainda serviu para reforçar mais a minha convicção. Por exemplo, não passa pela cabeça de ninguém que uma politica externa comum seja decidida acima de tudo por alemães e franceses (o que mais do que justifica o pé atrás dos ingleses). Eu nunca vi na união politica a força desta UE, é sim na união económica que se encontra a explicação do sucesso do projecto europeu e para manter tal estado de coisas não é necessário nenhum novo tratado.


De commonsense a 15 de Junho de 2008 às 22:41
Caro Jorge A.

Esta conversa está a tornar-se interessante. É raro conseguir-se uma conversa sobre este assunto sem perturbações emocionais ou irracionais.

Continuando:

Eu sei que os chamados partidos de governo prometeram o referendo nas respectivas campanhas eleitorais. Cá está a demagogia. Fica bem. Agrada aos jornalistas. Mas fizeram mal. O que deviam era ter dito qual o modelo que defendem para a estrutura institucional de UE. Isso não fizeram porque não sabem nem têm ideias na cabeça.

Mantenho o que já disse: preferia o Tratado Constitucional, que continha uma verdadeira constituição para a República da Europa, como Estado Soberano, e não um upgrade do Tratado de Nice, que é o Tratado de Lisboa. A diferença é abissal: o Tratado Constitucional instituía um novo sujeito de Direito Internacional e extingui as soberanias nacionais. O de Lisboa não faz nada disso.

Commonsense tem cidadania europeia e não lhe faz diferença a Alemanha, a França, a Itália, a Estónia ou Malta. Sente-se em casa em toda a Europa. A Europa é o seu país.
O que lhe interessa é que haja uma política externa comum, uma política de defesa comum, com forças armadas comuns, com um sistema fiscal comum, um sistema de saúde comum que sejam europeus.

Que acabe a colonização e a ocupação de Europa pelos EUA, que dura desde a II Gerra. Que haja uma política de energia comum que nos livre dos problemas que temos sofrido e um política económica e de comércio externo comum que impeça o que tem sucedido: a perda maciça de empregos e de qualidade de emprego, de poder de compra e de qualidade de vida, que tem sido impostos pela globalização e pelo hiper-liberalismo selvagem.

O projecto político europeu é solidário. Os irlandeses recusam a solidariedade europeia quando querem evitar ter de desembolsar para os mais pobres, para os europeus de leste e dos Balcãs. Passa-se o mesmo com os Dinamarqueses. Quando entraram na União eram pobres e gostaram de beneficiar; agora que são ricos, não querem dar nada aos mais pobres.

Este egoísmo, esta falta de solidariedade são incompatíveis com o projecto político da UE.

A UE não será uma zona de comércio livre, como querem os eurocépticos, uma nova EFTA, espero eu.

Ainda não desisti - e não vou desistir - de ver instituída a República da Europa, democrática livre e solidária.

Quem não quiser pode ficar pelo caminho.


De Jorge A. a 15 de Junho de 2008 às 23:49
"Commonsense tem cidadania europeia e não lhe faz diferença a Alemanha, a França, a Itália, a Estónia ou Malta. Sente-se em casa em toda a Europa. A Europa é o seu país."

Caro commonsense, pois nesse aspecto eu sou um cidadão do mundo, não me importo de sentir o mundo como o meu país. Agora como já ando farto de sacrificarem a minha liberdade individual em prol do interesse "nacional", mais me preocupa que ataques à minha liberdade individual começam a ser feitos vindos da UE. (Nota: http://www.granosalis.net/2008/06/parlamento-europeu-analisa-estatuto-da-blogosfera/ ).

"Que acabe a colonização e a ocupação de Europa pelos EUA, que dura desde a II Gerra. Que haja uma política de energia comum que nos livre dos problemas que temos sofrido e um política económica e de comércio externo comum que impeça o que tem sucedido: a perda maciça de empregos e de qualidade de emprego, de poder de compra e de qualidade de vida, que tem sido impostos pela globalização e pelo hiper-liberalismo selvagem."

Em primeiro lugar a conversa da colonização da Europa pelos EUA não faz o minimo sentido. Nesse aspecto é curioso porque aquilo que nós gostamos de tomar como nosso - o chamado modelo social europeu - só existe porque quando a paz não era um dado adquirido como é agora, o povo europeu nunca teve de recorrer às armas - outros houve que garantiram a nossa segurança. Sobre os aspectos negativos da globalização e do hiper-liberalismo gostava de saber o que os países do leste, os nossos novos pareceiros na UE, tem a dizer sobre o assunto. Se o commonsense reparar, e é assim que eu olho as coisas, quando diz que os irlandeses: "Quando entraram na União eram pobres e gostaram de beneficiar; agora que são ricos, não querem dar nada aos mais pobres." aplica-se que nem uma luva à sua queixa da fuga de empregos cá d burgo, para onde estão as empresas a deslocalizar a sua produção? Isso mesmo, para os novos estados membros. Portugal quando era o mais pobre não se queixou do fenómeno, como não fizemos nada para resolver o nosso problema económico (ao contrário dos irlandeses) agora sofremos.

"Os irlandeses recusam a solidariedade europeia quando querem evitar ter de desembolsar para os mais pobres, para os europeus de leste e dos Balcãs. Passa-se o mesmo com os Dinamarqueses. Quando entraram na União eram pobres e gostaram de beneficiar; agora que são ricos, não querem dar nada aos mais pobres."

Não me parece que isso tenha estado em discussão neste "não" irlandês, aliás, o próprio commonsense quando enuncia os que para si são os três principais motivos do povo irlandês para o "não", não coloca essa questão como um desses pontos. E já agora, o único partido irlandês que mostrou-se favorável ao "não", referiu que a sua posição advinha do facto do tratado não garantir uma europa mais social.

E para terminar caro commonsense, quando diz acerca dos partidos politicos, das suas promessas e do que deviam ter feito que: "Isso não fizeram porque não sabem nem têm ideias na cabeça.", estou em total acordo consigo, é por isso que tenho menos confiança nos deputados para validar o tratado do que no povo, vou ainda mais longe, o commonsense diz que o povo é mais vulnerável à demagogia, pois até pode ser, mas há uma coisa que os deputados são muito mais do que o povo: marionetas politicas.


De Jorge A. a 15 de Junho de 2008 às 23:55
"Esta conversa está a tornar-se interessante. É raro conseguir-se uma conversa sobre este assunto sem perturbações emocionais ou irracionais."

Já agora, e devia ter começado por aqui, para dizer que também estou de acordo consigo. A blogosfera é, neste aspecto, um dos poucos espaços onde tal discussão ainda ocorre.


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